segunda-feira, 30 de novembro de 2020

Albertina

Minha mãe, Albertina Vieira Franco, era filha de Eurico Vieira e Laudelina de Oliveira Franco. Nasceu em  5 de novembro de 1913, no lugarejo denominado Buritizeiros, situado na margem esquerda do rio São Francisco, do lado oposto à cidade de Pirapora, até então, sede do município. As duas localidades mineiras viriam mais tarde a se comunicar por meio de uma ponte metálica, cuja construção foi concluída em 1926.

Mesmo o duro controle da mãe, Dulina, não impedia os filhos de darem suas escapadas. Albertina, única filha naquele grupo masculino de irmãos, antes mesmo dos doze anos já encontrava brechas para os namoricos, fosse no intervalo das costuras ou na saída das aulas.

Por isso ou talvez por ser aquela que estava mais ao alcance da mão, era a principal vítima da ira materna, num tempo em que, até mesmo nas escolas, a palmatória se apresentava como símbolo de autoridade.

Albertina sofreu, da infância à juventude, tanto os efeitos da disciplina familiar como das privações de natureza material, comuns nos lares onde as bocas são muitas e o dinheiro é pouco, ou nenhum. 

Ela costumava se lembrar de um episódio que deixou suas marcas. Certa manhã muniu-se de anzol e isca e se dirigiu ao rio, tentando capturar um bagre ou qualquer outro pequeno peixe a tempo de prepara-lo para o almoço. Vez por outra puxava a linha pensando que a isca tinha sido mordida, mas nada, os peixes estavam ariscos. Passada mais de uma hora de tentativas frustradas, a linha finalmente se esticou e ficou pesada. Puxou cuidadosamente o anzol que se agarrara a algum obstáculo no fundo da água. Não era um peixe. Prezo ao anzol, emergiu um pequeno aro metálico. Depois se constatou que tratava de um anel de ouro em que estava incrustada uma pedra de valor apreciável. Este estranho pescado permitiu à mãe pagar os aluguéis atrasados e as contas penduradas no armazém, além de comprar roupas e sapatos para os filhos e prover manutenção de todos por um bom período.

Albertina teve alguns namorados, mas apenas um balançou seu coração. Empregado na companhia de navegação, comandante de vapor, sua atividade itinerante durante dias intermináveis pelo rio São Francisco não poderia deixar de trazer à cena as peripécias do caixeiro viajante Eurico, narradas por Dulina. Mãe e filha acharam melhor não arriscar.

Quando Nezinho finalmente cruzou seu caminho, Albertina não se entusiasmou nem um pouco. Aquele moço não era seu príncipe encantado. Dulina, por sua vez, fazia muito gosto nesse namoro e pressionava insistentemente a filha, procurando induzi-la ao casamento. Seus meios de persuasão na maioria das vezes passavam das palavras para a ação. As tentativas de convencimento se transferiram da boca para o peso das mãos e daí para a sola dos chinelos e até da chibata, única herança remanescente dos tempos em que a usava para fustigar os animais de sela.

Albertina não resistiu por mais de um ano à força de tão poderosos argumentos. No princípio de fevereiro de 1934, em cerimônia religiosa realizada na igreja matriz de São Sebastião, em Pirapora, Albertina Vieira Franco e Manoel Ferreira Diniz se uniram pelos sagrados laços do sacramento do matrimônio.

A família passou por muitas dificuldades após a morte do meu pai, mas Mãe dizia que teve muito apoio do irmão Urbano. Meu pai deixou um seguro que ela empregou na compra de uma casa perto de onde morávamos, e uma pensão, que passou a receber muito tempo depois. Lá mais adiante, já com Domingos em Sete Lagoas, ela falou uns vizinhos (compadres?), seu Manoel, dono do armazém, e dona Sinhá, que nos ajudaram muito em necessidades básicas. A coisa que já era difícil em Pirapora ficou pior em Sete Lagoas, a família crescendo, os filhos pequenos.

Dulina

Minha avó materna, Laudelina, que na família era chamada pelo apelido de Dulina, procedia do meio rural de João Pinheiro, Minas Gerais, onde os passe dedicavam principalmente à pecuária bovina.

Ainda muito jovem, casou com Eurico, um rapaz de Curvelo (MG), que trabalhava como caixeiro viajante. Tal profissão por si só já era um prenúncio dos problemas que poderiam vir e o moço não decepcionou aqueles que assim pensavam.

Casamento foi um desastre para Dulina. Só mais tarde veio a saber que o marido mantinha ligações com outra mulher em Curvelo, a qual, para liberá-lo, exigira uma pesada soma em dinheiro, além de casa mobiliada, sem o que não estava disposta a se conformar com o casamento. 

Assim, no dia seguinte à lua-de-mel, ainda na fazenda dos pais, Dulina deparou com uma cena inesperada. Toda a parte do gado que lhe cabia como dote estava sendo remarcada e preparada para embarque. Eurico agira com muita rapidez e não perdera tempo em pagar a reparação exigida.

Foi o primeiro dos golpes que a vida lhe aplicou. Segundo o testemunho dos irmãos Ioiô e Margarida (Sá Guida), essa grande desilusão roubou para sempre a alegria da ainda adolescente Dulina, revelando também o caráter temperamental que ainda não tinha se manifestado.

Mais tarde o casal decidiu fixar residência em Buritizeiros, mas a vida em comum estava fadada a durar pouco. O primeiro filho, Alberto, nasceu em 1911 e, antes do nascimento de Albertina, que viria em seguida, Eurico foi vitimado por uma intoxicação alimentar -manga com queijo, conforme se concluiu na ocasião - e faleceu.

Orgulhosa até o fim da vida, Dulina jamais quis pedir ajuda à própria família ou aos parentes do marido. Sobreviveu e criou seus filhos em meio a muitas dificuldades, trabalhando dia e noite como costureira, profissão que depois seria abraçada por também por Albertina.

Dulina era uma figura que chamava a atenção, principalmente dos homens. Esguia, pela clara queimada de sol, cabelos lisos e pretos, nariz um tanto aquilino e olhos muito azuis.

Viúva jovem e bonita, inexperiente e sozinha, longe da família, não poderia mesmo escapar das armadilhas colocadas em seu caminho. Acreditou demais nas promessas e juras de pessoas conceituadas e influentes na região, que não estavam interessadas em honrar a palavra.

Dessas relações extraconjugais lhe vieram outros filhos, com os quais, entretanto, jamais procurou fazer valer direitos ou obter qualquer espécie de vantagem ou favor. Depois de Alberto e Albertina, nasceram Urbano, José Licurgo e José Raimundo, o Juquinha.

Dulina nem mesmo quis saberias terras que lhe pertenciam em João Pinheiro. Muitos anos mais tarde ela seria convidada a comparecera uma repartição do Ministério da Viação e Obras Públicas a fim de assinar uns papéis autorizando a passagem da rodovia Rio-Brasília pela sua propriedade. A indenização lhe permitiria colocar em dia o pagamento de dos impostos atrasados, sobrar-lhe ia algum dinheiro e ainda ficaria com os terrenos situados dos dois lados da futura BR-040.

Não se interessou, como também não se interessou pelos direitos dos filhos como legítimos sucessores de Eurico, na partilha da herança deixada pelo falecimento do sogro e, mais tarde, da sogra. Quando morreu o sogro, limitou-se a outorgar a procuração a um advogado que nunca lhe prestou contas. No outro caso, simplesmente ficou alheia e nem tomou conhecimento do processo de inventário, com o que os cunhados se aproveitaram do seu quinhão.

Houve ainda outro legado por testamento constituído por um parente do marido que morreu sem que tivesse herdeiros diretos. Nada disso abalou Dulina de sua dura rotina diária, até porque a morte prematura do marido - e os descaminhos que se seguiram - fizeram com que suas ligações com os familiares de Eurico, todos residentes em Curvelo, deixassem de existir.

Quem dá o pão dá o castigo, sentencia o dito popular. Pedalando sem parar a sua máquina Singer, nem assim Dulina se descuidava dos filhos, submetidos ao seu domínio opressivo, tirânico. Criou-os com mão de ferro, infringindo-lhes severos castigos físicos

Minha avó Dulina também curtia assuntos de ocultismo, cartomancia, quiromancia, lia cartas, lia mãos, interpretava sonhos. Ela tinha um Livro dos Sonhos no qual acreditava. Mãe me disse que ela teve um sonho profético em que meu pai tentava atravessar um rio de uma margem oposta a outra onde ela se encontrava. Segundo ela interpretou, alguns dias depois o sonho se realizou, ou seja, a morte dele. 




enviou 21 de novembro às 16:27

sábado, 14 de novembro de 2020

Nezinho



Herberto Diniz, meu tio Beto, irmão dois anos mais novo do Eudes, escreveu esta carta, postada de Sete Lagoas em 2/4/1996:

EUDES, como lhe disse, aí estão os primeiros rabiscos, uma ideia do que estou pretendendo. As informações que você puder me mandar, inclusive registros pessoais de memória, registros dos parentes, aquela certidão, tudo será bem recebido. O que vai sair daí, só o tempo dirá.

             "Meu pai, Manoel Ferreira Diniz, Nezinho para os familiares e amigos, era filho de Emídio Ferreira Diniz e Evelina Ferreira Diniz. Nasceu a 19 de novembro de 1907 em Petrolina, do lado pernambucano do rio São Francisco, bem defronte à cidade baiana de Juazeiro, região onde uma ponte liga Pernambuco à Bahia.

            Barbeiro e cabeleireiro por profissão, ganhou popularidade local pelos seus dotes de violonista e cantor. Em Petrolina, atuou em muitos shows, principalmente acompanhando cantores populares famosos na década de trinta. Já reunia uma quantidade apreciável de convites e cartas de apresentação, referências que certamente lhe abririam portas, quando tomou a decisão de partir em busca do sonho de voos mais altos na carreira artística, quando as emissoras de rádio começavam a abrigar artistas de sucesso no Rio de Janeiro.

           


               E
mbarcou em um dos muitos barcos a vapor da C
ompanhia de Navegação do São Francisco, que compunham a linha Juazeiro a Pirapora, ponto final da parte navegável do rio. Permaneceria alguns dias em Pirapora na casa de Vicente, seu irmão mais velho, antes de prosseguir viagem em direção à antiga capital federal, provavelmente na segunda classe do trem expresso da estrada de ferro Central do Brasil. Assim que chegou a Pirapora, começou a trabalhar enquanto aguardava a hora mais propícia para por o pé na estrada e cumprir sua sina de nordestino. 

           A habilidade na tesoura e nas cordas foi trazendo amigos e ele foi ficando. Casou-se e teve filhos em Pirapora. Nezinho não era aquele boêmio clássico, embora eventualmente participasse de noitadas com os seresteiros da cidade. Não era farrista, como naquele tempo o violão poderia sugerir. Jovens e adultos de todas as idades e de todas as famílias tanto se sucediam na sua cadeira de barbeiro quanto se deleitavam com as valsas, modinhas e sambas em voga, reproduzidas pela sua voz e seu violão.

Em 2020, falando desta carta, Beto revelou outras informações sobre Nezinho:

           O principal clube de Pirapora nessa época era o Independentes, ao lado de nossa casa, o clube da chamada elite local. Havia também o clube dos Marítimos, do pessoal da navegação, mais popular. Nezinho passou a participar ativamente da vida da comunidade, e ajudou a fundar aquele que se tornou um dos principais clubes sociais do lugar. Meu pai pretendia que o clube fosse também literário, mas essa ideia não foi vista com bons olhos e foi vencida, e o clube no fim ficou apenas recreativo. Parece que grupos literários abrigavam movimentos de esquerda, numa época em que os comunistas eram muito demonizados. Veja a ata nº. 1, do Centro Recreativo Piraporense: 

Pirapora, 11 de janeiro de 1941. Amºs. e Srs. - Havendo necessidade de fundar-se mais um Club recreativo e literário em Pirapora, tomo a iniciativa de convidar Vs.Srs. para uma reunião amanhã, dia 12, às 14 horas no Hotel Internacional, a fim de discutirmos os pontos principaes (sic) e elegermos uma diretoria provisoria. 

Ass. Manoel Diniz, seguindo-se 38 outras assinaturas, e os respectivos "scientes". 

Inauguração do Club noticiada no jornal carioca A Noite em 29/05/1941


                  Em março de 1942, com navios sendo afundados na costa brasileira, o assunto do momento era a guerra. Nezinho ficava até tarde da noite ouvindo as notícias internacionais pela Voz da América nas ondas curtas do rádio, pois as estações brasileiras fechavam mais cedo. Embora as transmissões fossem também em português, parece que ele ficava procurando outras estações, espanholas ou mesmo portuguesas, pois não creio que pudesse compreender completamente as transmissões em inglês. Encontrei um livro, já sem capa, com lições básicas de pronúncia em inglês e restos de livros contábeis em branco que ele utilizava para anotações (além de barbeiro, também fazia escritas contábeis). Aparentemente era autodidata, dadas as dificuldades para estudar naquela ocasião.   

                Numa tarde de festa solene no clube, em que seriam inaugurados retratos do presidente e do governador, Nezinho pegou três dos filhos, Dagmar, Eudes e eu, com 7, 6 e 4 anos de idade, e nos levou para essa reunião. Minha mãe ficou em casa com Roberto, de dois anos, e já nos dias de ter Manoelita. Quando saímos de casa, veio até a porta, de lenço branco na cabeça, eu disse a ela que íamos "tirar retrato", uma confusão com a inauguração dos retratos. Podia ter sido um dia comum, mas foi o dia que mudou o destino de cada um de nós. Nezinho nunca pode trazer os filhos de volta para casa. Ao final da solenidade, sentiu-se mal e faleceu no local.         
 
Praça do Coreto em Pirapora nos anos 40

              No dia do falecimento do meu pai, vi Eudes no meio da praça do Coreto, com a gravata do meu pai no pescoço. Parecia se divertir, sem noção do drama que estava se desenrolando. Uma moça chegou perto e disse que meu pai tinha ido comprar picolés para nós. Dagmar presenciou a morte do meu pai e disse que eles o deitaram numa varanda ao lado do salão do clube. 

            Alguns flashes desse dia: ele deitado na cama lá em casa com um lenço cobrindo o rosto, um curioso chegando e levantando o lenço para olhar. Minha madrinha e a irmã, o beijo de despedida no rosto gelado. Não consigo me lembrar quem nos levou pra casa de uns vizinhos, com uns meninos da nossa idade. Eu disse que "a gente morria mas depois voltava". Um deles desmentiu e me deixou com um nó na garganta. Meias lembranças que vou levar comigo. 

Ata da vigésima primeira (21ª.) seção do Centro Recreativo Piraporense, realizada às quinze (15) horas do dia quinze (15) de março de mil novecentos e quarenta e dois (1942), presentes a diretoria do Centro, os exmos. senhores juiz de direito, prefeito municipal, coletor estadual, altas autoridades públicas, representantes de casas de crédito, do comércio e indústria da cidade, e corpo social do Recreativo, com o fim especial do programa, qual seja o de fazer-se inaugurar no salão do Centro os retratos dos eminentes senhores dr. Getúlio Vargas, chefe da República, dr. Benedito Valadares, governador do estado de Minas e major Ernesto Dorneles, chefe de polícia do mesmo estado. O sr. Nelson Trindade Cota abre a seção convidando para presidi-la o meritíssimo senhor dr. Edmundo Bicalho Filho, juiz de direito da comarca. (seguem-se vários parágrafos sobre o transcurso da reunião). Em seguida, o presidente da seção leu dois telegramas de agradecimentos das homenagens respectivamente dos exmos. srs. drs. Getúlio Dorneles Vargas e dr. Benedito Valadares Ribeiro. Franqueada a palavra dela fez uso o sócio Manoel Ferreira Diniz, que em breves palavras pediu que a solenidade fosse coroada cantando-se no seu encerramento o Hino Nacional Brasileiro. O exmo. juiz de direito fez uma oração sobre o nosso hino, sendo muito aplaudido. Pelos presentes foi cantada com entusiasmo a canção nacional.  Nada mais havendo que se fizesse, foi encerrada a seção (sic), mandando o sr. presidente do Centro que por mim fosse lavrada a presente ata, etc., seguindo-se 3 assinaturas. 

                Na ata escrita naquele dia, não havia nenhuma observação sobre o que ocorreu ao final. Mas em 1993, Manoelita esteve em Pirapora, procurou o antigo presidente, resgatou várias cópias das atas, e cobrou dele essa omissão. Com a letra já um pouco trêmula, ele fez seguinte emenda na ata do dia 15 de março de 1942:

"Obs. Lamentavelmente, no fim do Hino Nacional cantado a pedido do nosso sócio nº. 1, Manoel Diniz, razão de ser deste Club, sua emoção foi tanta que começou a passar mal. Levamos o associado para o alpendre e imediatamente chamamos o dr. Rodolfo Malard, que morava em frente do Club, entretanto quando o médico chegou dissera ser desnecessario (sic) qualquer outra providência, porque o estimado sócio se encontrava morto. Ass. Nelson Trindade Cotta, Presidente"

Falecimento de Nezinho noticiado no jornal A Noite em 17/03/1942




                 Naquele dia, além dos retratos mencionados foram inaugurados outros, inclusive o do meu pai, que eu pude ver anos mais tarde, na parede de um cubículo ao lado do salão. Mãe dizia que no dia do enterro, uma segunda-feira, foi uma espécie de feriado, nada funcionou em Pirapora. Antigamente era possível, até porque o prefeito era meu padrinho, compadre dele.

                Nezinho talvez fosse um cara de estopim meio curto. Vi umas tiradas dele em uma das atas do primeiro ano, chamando a atenção do pessoal por um erro. Tinha o propósito de seguir viagem com a família no fim do ano, mas estava escrito que não chegaria ao Rio de Janeiro. Seus planos, seus sonhos, terminaram ali mesmo. Tinha 34 anos.                


sábado, 31 de outubro de 2020

Crônica para um Grande Amigo

2 de novembro, dia de Finados, dia da despedida do Eudes, em 2010. 

José Antônio Diniz de Oliveira, um grande amigo, escreveu esta crônica, publicada em Dez/2010 na Revista do Satélite, uma das tantas associações dos funcionários do Banco do Brasil das quais o Eudes foi ativo participante.

Difícil, muito difícil escrever sobre você, Humberto Eudes. Afinal, foram 25 anos de conversas, lutas e vivências que marcaram demais a vida de seus amigos mais próximos.

Eu poderia falar do militante comunista que entrou para o Partidão em 1968, quando todo mundo estava saindo ou se escondendo. Época em que você, caixa do Banco, temendo perder o emprego, tirou carteira de habilitação profissional para ser taxista, se a situação piorasse.

Foi quando também se elegeu conselheiro fiscal da Cooperativa de Consumo. Tinha cinco anos de Banco e enfrentou problemas para recusar a aprovação de um balanço (em que o contador ganhou uma geladeira para assinar o balanço). Contando isso hoje, parece bobagem mas em 1968, os tempos eram difíceis, a ditadura recrudescia e dar uma de herói era quase um suicídio. Mas você era teimoso e resistiu a participar de uma enganação. Quase virou taxista ("o que não seria nenhuma desonra", você diria). 

Um dia virou diretor da Cooperativa. Já era década de 80. Começou como diretor e depois foi presidente, revezando com o Barreto. Foi uma época pujante, até a inflação galopar e virem os planos Cruzado, Bresser, Verão, Collor. E a Cooperativa, firme, vendendo com 50 dias de prazo, porque você não abria mão de "arrecadar dos fornecedores e do Banco para repassar aos cooperados".

Em 1989, criamos a FECOB, para reunir as cooperativas de consumo dos funcionários do BB, revelando uma realidade que nem o Banco conhecia. Você foi o primeiro presidente, mas nunca se importou com isso. Importava-se muito mais com o fechamento de uma cooperativa, por menor que fosse, porque via nisso uma fragilidade do nosso sistema e da nossa causa romântica. Nós que professávamos os princípios dos probos pioneiros de Rochdale que, na Inglaterra ("nos arredores de Manchester", dizia) criaram o sistema cooperativista em 1844.

Um dia o pessoal da Previ descobriu a sua importância e você foi eleito conselheiro deliberativo. E foi sua melhor fase, sua grande contribuição. Na reforma do estatuto de 1997, seu trabalho foi fundamental para o texto e para o debate. Alguns militantes de fala fácil que nunca legaram nada, criticam até hoje. Para ficar apenas num ponto, o benefício dos aposentados acompanhava o salário do pessoal da ativa, que ficou oito anos sem reajuste. Não fosse o índice inserido em estatuto, certamente os aposentados receberiam hoje metade do que recebem.

Quando veio a privatização, disse: "eu também sou contra, mas se vão fazer, a Previ tem que participar."  Foi assim que a Vale não se desnacionalizou completamente. Também defendeu a participação no Conselho das empresas, para que a Previ não cedesse apenas seus recursos, mas pudesse influir nos destinos de seus negócios. 

Defendeu o investimento em projetos que viabilizassem o Brasil- mantido o ganho atuarial e  legal, é claro - "porque não poderíamos ser navegantes de primeira classe de um barco que estivesse afundando". Simples: o Brasil tinha que dar certo.

Meu velho, só a Rosa - sua companheira de tantos anos - saberia descrever tudo o que você viveu e sofreu pela coletividade dos funcionários do Banco. Só ela conhecia o seu lado mais forte e suas fragilidades.

Mas não é da sua militância política ou associativista que os amigos que conviveram com você sentem mais saudade. É do leitor voraz, de memória incrível; do poeta que decorava poesia, cometia sonetos e fazia músicas; do cinéfilo que não se esquecia do enredo de filmes, ainda que muito antigos; do erudito; do crítico; do popular; do chantagista emocional; do emotivo, do sentimental que sabia todas as músicas (nome, compositor, letrista); do palmeirense; do mineiro.

Pai, filho, irmão e amigo. Preciso de todas essas dimensões para dizer do afeto pela sua pessoa e expressar a falta que você representa na vida de quem teve o privilégio de compartilhar sua doce e intensa companhia.

A gente nunca vai se conformar, para usar um verso seu, "com o vazio desta dor".





domingo, 9 de agosto de 2020

Tolezano

Salvador Tolezano é nome de rua no Mandaqui, em São Paulo, próximo ao Conjunto dos Bancários (localização no mapa). Tolezano foi presidente do Sindicato dos Bancários de São Paulo entre 1969 e 1970. Liderança importante, ajudou na mobilização da categoria pós 1964, como conta Frederico Brandão, que o antecedeu na presidência do sindicato, entre 1966 e 1969. Walter Barelli, importante nome do DIEESE, também lembra da liderança de Tolezano em seu depoimento ao Centro de Memória Sindical.

Amigo próximo de Tolezano, Eudes nos contava histórias do sindicalista, nascido na Itália, cruzando fronteiras controladas pelos nazistas ao final da guerra e, com apenas 6 anos de idade, funcionava como mensageiro para os "partigiani". Eu ficava encantado de saber como um menino menor que eu era capaz de uma façanha de tanta coragem.  

Tolezano tinha uma outra importância fundamental para mim. Era ele que, por algum motivo que nunca entendi muito bem, encaminhava os fascículos da enciclopédia Conhecer que o Eudes trazia pra casa e eu devorava, antes mesmo de serem encadernados naqueles grandes livros vermelhos. 

Antes do Google e da Wikipédia – as enciclopédias do passado ...


Membro do Partido Comunista Brasileiro, Tolezano ficara, como o Eudes, na ala minoritária dos bancários contra entrar na luta armada. A maioria tinha ficado com Marighella e achava que só uma solução militar poderia restaurar a democracia. O trabalho no espaço muito restrito deixado para a militância civil dava pouca visibilidade, avançava muito lentamente, mas tinha conseguido deixar uma marca entre os bancários.

Tolezano foi assassinado por dois policiais militares a quem deu carona na volta de um evento do sindicato em Sorocaba, em janeiro de 1970. O assassinato foi tratado como crime comum, pois os dois policiais foram presos e alegaram que queriam rouba-lo. Curiosamente, não levaram relógio nem carteira, jogados numa represa junto com o corpo, amarrado numa pedra. 

A repressão avançava não só contra quem pegava em armas contra o regime militar. Quem estava na ação civil também estava sob risco. Para Eudes, foi o sinal para se afastar do movimento sindical. Fez a opção de defender a segurança da família. Era mais importante, naquele momento, ser marido e pai.   

Tolezano deixou filhos, a quem, 50 anos depois, desejo um feliz dia dos pais. 


sexta-feira, 7 de agosto de 2020

Lágrimas de pai-herói

18 de setembro de 1971, um sábado. Eu tinha 11 anos.

O jornal vespertino na TV tinha chamado minha atenção com uma notícia insistente: Carlos Lamarca tinha sido morto na véspera. Capitão do Exército Brasileiro, serviu no Batalhão das Nações Unidas no canal de Suez em 1962 antes de transformar-se em terrorista procurado. Era um dia cinza, fim de inverno.

Lamarca (primeiro à direita) aparece como procurado em um cartaz

Já tinha ouvido sobre ele. Eudes, bancário, fazendo comentários sobre um Lamarca instrutor de tiro para bancários enfrentarem os assaltos constantes promovidos por terroristas. Depois fugiu com armas de um quartel e virou paradigma do enfrentamento armado ao regime militar. Algo de façanha, algo de trágico. Depois de Marighella e antes do Araguaia.

Lamarca em treinamento

Naquela noite, amigos dos meus pais confraternizaram na minha casa. Cervejas, comidinhas da minha mãe, muita conversa sobre música. Histórias, piadas. Risos. 

Inventei de entrar na conversa dos adultos. E fui falando: "mataram aquele cara, o Lamarca". "Como?" "Quem?" "Lamarca?" "Não pode ser." "Foi sim. eu vi na TV". Silêncio. Eudes, já depois de um número de cervejas, começou a lacrimejar. Evoluiu para um choro compulsivo. Os amigos sentiram. Despedidas, fim de festa. Eu sem entender. Acabei com a festa? 

Eu tinha 11 anos.



 

segunda-feira, 27 de julho de 2020

Eudes e a Grande Cidade

Em julho de 1963, depois de três meses morando sozinho e já trabalhando no Banco do Brasil, Eudes escreve para Rosa vir com as crianças e se juntarem a ele em São Paulo, a grande cidade:

"Porque é dolorosamente insuportável enfrentar um longo dia que se inicia muito antes do sol, sair muito depois que o sol já se foi, enfrentar filas, empurrões, pisadas, xingatórios, pragas, brigas, viajar que nem sardinha, para continuar dolorosamente triste, intensamente preocupado, sentimentalmente sozinho."


Já vivendo o que Friederich Engels tinha descrito em "A Situação da Classe Trabalhadora na Inglaterra", Eudes certamente conhecia essa literatura: "Esses milhares de indivíduos, de todos os lugares e de todas as classes, que se apressam e se empurram (...), essas pessoas que se cruzam como se nada tivessem em comum (...) e ninguém pensa em conceder ao outro sequer um olhar. Essa indiferença brutal, esse insensível isolamento de cada um no terreno do seu interesse pessoal é tanto mais repugnante e chocante quanto maior é o número desses indivíduos confinados nesse espaço limitado; e mesmo que saibamos que esse isolamento do indivíduo, esse mesquinho egoísmo, constitui em toda parte o princípio fundamental da nossa sociedade moderna, em lugar nenhum se manifesta de modo tão impudente e claro como na confusão da grande cidade." 

Este mesmo sentimento sobre a cidade grande voltou a se materializar alguns anos depois, quando Eudes tomou gosto pela  canção "Despertar" (veja abaixo), interpretada por Iracema Werneck, a quinta música da fase eliminatória nacional do III Festival Internacional da Canção apresentada no Maracanãzinho numa quinta-feira, 26 de Setembro de 1968. Na mesma noite, a jovem Beth Carvalho defendeu "Andança", de Danilo Caymmi e Edmundo Souto. Este festival ficou mais conhecido pelo embate entre "Sabiá" de Tom Jobim e Chico Buarque, preferida dos jurados, e "Caminhando" de Geraldo Vandré, preferida do público, ambas defendidas no sábado, 28 de setembro.  (retirado do arquivo do Jornal do Brasil, clique no link para ver a página do jornal em uma época que se publicavam as letras das canções como escalação de times que se enfrentariam mais tarde).

"DESPERTAR" (clique para ouvir)

Flávia de Queirós Lima — Hedis Barroso Neto — Intérpretes: Iracema Wemeck e As Compositoras

Debruçada na janela

vejo o sol se espreguiçando, 

colorindo novo dia —

vem sorrindo, vem cantando 

no barulho da cidade

que desperta de mansinho.

... o leiteiro vai passando —

assustou um passarinho 

distraído na calçada...

foi-se embora a madrugada, 

mais um dia começou

no corre-corre, o leva-e-trás, 

quem não corre não vem mais. 

Corre-corre todo mundo,

fico pronta num segundo

e vou também:

Trabalhar, ganhar dinheiro 

pra comprar vestido nôvo. 

Quem descansa chama rico 

quem trabalha chama povo 

que sou eu, você também. 

mas não conte pra ninguém

Que amanhã eu vou-me embora, 

já comprei casa na lua,

eu não quero ver passando

tanta gente pela rua

se esquecendo de ser gente, 

tão distante, tão sozinha... 

Tudo acaba de repente, 

quem será que vai ficar

pra contar nossa historinha?