terça-feira, 15 de novembro de 2011

O dia em que a Libelu tomou o poder

por Humberto Eudes

Parecia um dia como os outros. Mas dentro em mim havia um não-sei-quê de sonho, de alucinação. Depois de séculos e séculos de exploração do homem pelo homem, enfim, o proletariado tomava o poder. E o exercia sem rodeios, sem burocracia. Tudo o que desde sempre precisava ser feito era feito na hora.
Para a histórica ascensão do partido ao poder foi necessária a manifestação do Colégio Eleitoral, única forma prevista na Constituição. Isto porque o inimaginável aconteceu: uma onda de dignidade dominou o país, resgatando-o do mais fundo de sua História. E os homens de bem, que então tiveram vez e voz,para corrigir a maior de todas as injustiças, resolveram entregar o poder ao proletariado, à sua expressão histórica.
E como os homens de bem geralmente acreditam que as leis provenham da consciência de outros homens de bem, e não sejam apenas o reflexo do interesse de outros homens não necessariamente tanto assim, exigiram que tudo fosse feito de acordo com a lei.
Claro, houve problemas antes da reunião do Colégio. Alguns militantes agitaram-se e queriam inclusive cassar a direção do partido, que não via outro meio. Alguém sempre muito discreto e distraído pediu palavra, tentando acalmar os ânimos. Disse que ao proletariado às vezes tem que sobrar criatividadepara atravessar o Rubicão. Citou, como exemplo, o Tratado Ribbentrop-Molotov sem o qual a seu ver, teria sido varrido da face da terra o único estado socialista. Foi uma infelicidade: a sala quase veio abaixo. Ninguém segurava ninguém. Uma japonesinha propôs que fosse feita uma votaçãopara eleger entre Hitler e Stalin o inimigo número um da humanidade. Alguém sugeriu a inclusão no pleito do nome de Maluf. Os ânimos serenaram-se um pouco e Stalin foi eleito por unanimidade.
No fim, um jovem recentemente despedido do Banco Itaú, onde deixava boa impressão no extinto Partido Popular, em manobra de fazer inveja a qualquer suposta raposa peemedebista, arrancou a autorização do plenário. E assim foi eleito para a Presidência da República o jovem Chang, um sino-brasileiro muito bem conceituado entre esquerdas, mesmo onde suas posições eram tidas como radicais e irrealistas. Seu primeiro ato foi extinguir, por decreto tão somente, o próprio Colégio Eleitoral, como ficara decidido na reunião do partido.
O dia inteiro houve reuniões para decidir o que fazer. Um estudante pediu um canhão para a UNE, permanentemente voltado contra o Ministério do Exército. Penso que era o tal de equilíbrio do terror. Houve quem sugerisse, também, a instalação de uma usina para aproveitamento do plancto, tão nutritivo, que acondicionado à farinha de mandioca poderia constituir-se em uma espécie de farofa para matar a fome dos milhões de irmãos nordestinos. Um contínuo, cearense, que fora apanhado no caminho, perguntou se não seria melhor dar só a farinha imediatamente, a farinha-já, mas pouco afeito a debates políticos nem obteve registro para sua questão. Um pequeno comerciante, recebido com reservas, propôs um New Deal nacional para arregimentar imediatamente os desempregados, com o estado tomando a iniciativa econômica. A proposta, criticada por uma estudante de Psicologia como tendente a levar o país de volta ao capitalismo, como aliás acontecera nos Estados Unidos, também foi rejeitada.
Mas algumas medidas foram tomadas. Uma que achei muito importante foi a que punha fim às discriminações. Um decreto suscinto extinguia todo e qualquer tipo de distinção de raça, credo, cor e de sexo, além de proibir , sobe pena de severas punições, a qualquer forma de pressão sobre as minorias. Foi emocionante. Perto de mim, quando ouvia a íntegra do decreto pelo rádio, um senhor negro soluçava, tentando estancar as lágrimas com o último exemplar de O Trabalho, que estampava em manchetes ainda quentes a implantação definitiva do paraíso na terra.
Uma coleguinha, a Nanci, que apesar de bonita é tão inteligente, foi nomeada presidente do Banco do Brasil e em cinco minutos promoveu todo mundo para o nível S-8, inclusive o pessoal da Pires e do restaurante.
À noite houve uma grande manifestação no Vale do Anhamgabaú, que se estendeu até quase o amanhecer. Certo, não havia tanta gente como em 16 de abril, no comício das Diretas-já. Mas o que se perdia em quantidade recuperava-se em qualidade, tal a definição e a profundidade das propostas. E também havia a criatividade da massa: como faltasse gente para segurar uma faixa, o jovem que a sustinha amarrou a outra extremidade em uma árvore.
Um japonês, cujo nome não me lembro agora, parecia delirar. Piscava os olhos sem parar, como não acreditando nesse dia pelo qual lutara a vida inteira, desde os tempos da União do Estudantes Secundaristas. Paulo Velloso, de olhos atentos e inteligentes por trás dos óculos de intelectual, parecia registrar tudo na mente. Levava duas pastas, uma embaixo de cada braço. Acho que eram as da Agricultura e a das Minas e Energia. Nunca essas pastas estiveram em sovacos mais dignos.
No final Chang tomou a palavra. Elisa, uma funcionária do Banespa, olhava-o fixamente, com uma expressão que nenhum homem tem o direito de morrer sem ter sido olhado assim, pelo menos uma vez na vida. (Ah, Lise, resgata-me deste raso de descrença com teus olhos de inocência e de perdão! Esta vontade de ajoelhar-me sempre que te vejo ou penso em ti! Dissolve com tua paz esta angústia de toda hora no meu coração! Diz uma palavra e semeia um pouco de esperança na desolação e na tristeza deste mundo!)

Olhei em torno para ver as outras testemunhas dessa virada histórica. Éramos uns três ou quatro, mais ou menos. Perto de nós um bêbado tentou chutar uma lata e só acertou o meio-fio. Um cachorro alienado farejava um caixote de lixo. Furando um bloqueio de poluição, ao longe e apesar de tudo, raia o day after. Simplório, desinformado e apolítico. O inevitável dia seguinte.