terça-feira, 15 de novembro de 2011

O dia em que a Libelu tomou o poder

por Humberto Eudes

Parecia um dia como os outros. Mas dentro em mim havia um não-sei-quê de sonho, de alucinação. Depois de séculos e séculos de exploração do homem pelo homem, enfim, o proletariado tomava o poder. E o exercia sem rodeios, sem burocracia. Tudo o que desde sempre precisava ser feito era feito na hora.
Para a histórica ascensão do partido ao poder foi necessária a manifestação do Colégio Eleitoral, única forma prevista na Constituição. Isto porque o inimaginável aconteceu: uma onda de dignidade dominou o país, resgatando-o do mais fundo de sua História. E os homens de bem, que então tiveram vez e voz,para corrigir a maior de todas as injustiças, resolveram entregar o poder ao proletariado, à sua expressão histórica.
E como os homens de bem geralmente acreditam que as leis provenham da consciência de outros homens de bem, e não sejam apenas o reflexo do interesse de outros homens não necessariamente tanto assim, exigiram que tudo fosse feito de acordo com a lei.
Claro, houve problemas antes da reunião do Colégio. Alguns militantes agitaram-se e queriam inclusive cassar a direção do partido, que não via outro meio. Alguém sempre muito discreto e distraído pediu palavra, tentando acalmar os ânimos. Disse que ao proletariado às vezes tem que sobrar criatividadepara atravessar o Rubicão. Citou, como exemplo, o Tratado Ribbentrop-Molotov sem o qual a seu ver, teria sido varrido da face da terra o único estado socialista. Foi uma infelicidade: a sala quase veio abaixo. Ninguém segurava ninguém. Uma japonesinha propôs que fosse feita uma votaçãopara eleger entre Hitler e Stalin o inimigo número um da humanidade. Alguém sugeriu a inclusão no pleito do nome de Maluf. Os ânimos serenaram-se um pouco e Stalin foi eleito por unanimidade.
No fim, um jovem recentemente despedido do Banco Itaú, onde deixava boa impressão no extinto Partido Popular, em manobra de fazer inveja a qualquer suposta raposa peemedebista, arrancou a autorização do plenário. E assim foi eleito para a Presidência da República o jovem Chang, um sino-brasileiro muito bem conceituado entre esquerdas, mesmo onde suas posições eram tidas como radicais e irrealistas. Seu primeiro ato foi extinguir, por decreto tão somente, o próprio Colégio Eleitoral, como ficara decidido na reunião do partido.
O dia inteiro houve reuniões para decidir o que fazer. Um estudante pediu um canhão para a UNE, permanentemente voltado contra o Ministério do Exército. Penso que era o tal de equilíbrio do terror. Houve quem sugerisse, também, a instalação de uma usina para aproveitamento do plancto, tão nutritivo, que acondicionado à farinha de mandioca poderia constituir-se em uma espécie de farofa para matar a fome dos milhões de irmãos nordestinos. Um contínuo, cearense, que fora apanhado no caminho, perguntou se não seria melhor dar só a farinha imediatamente, a farinha-já, mas pouco afeito a debates políticos nem obteve registro para sua questão. Um pequeno comerciante, recebido com reservas, propôs um New Deal nacional para arregimentar imediatamente os desempregados, com o estado tomando a iniciativa econômica. A proposta, criticada por uma estudante de Psicologia como tendente a levar o país de volta ao capitalismo, como aliás acontecera nos Estados Unidos, também foi rejeitada.
Mas algumas medidas foram tomadas. Uma que achei muito importante foi a que punha fim às discriminações. Um decreto suscinto extinguia todo e qualquer tipo de distinção de raça, credo, cor e de sexo, além de proibir , sobe pena de severas punições, a qualquer forma de pressão sobre as minorias. Foi emocionante. Perto de mim, quando ouvia a íntegra do decreto pelo rádio, um senhor negro soluçava, tentando estancar as lágrimas com o último exemplar de O Trabalho, que estampava em manchetes ainda quentes a implantação definitiva do paraíso na terra.
Uma coleguinha, a Nanci, que apesar de bonita é tão inteligente, foi nomeada presidente do Banco do Brasil e em cinco minutos promoveu todo mundo para o nível S-8, inclusive o pessoal da Pires e do restaurante.
À noite houve uma grande manifestação no Vale do Anhamgabaú, que se estendeu até quase o amanhecer. Certo, não havia tanta gente como em 16 de abril, no comício das Diretas-já. Mas o que se perdia em quantidade recuperava-se em qualidade, tal a definição e a profundidade das propostas. E também havia a criatividade da massa: como faltasse gente para segurar uma faixa, o jovem que a sustinha amarrou a outra extremidade em uma árvore.
Um japonês, cujo nome não me lembro agora, parecia delirar. Piscava os olhos sem parar, como não acreditando nesse dia pelo qual lutara a vida inteira, desde os tempos da União do Estudantes Secundaristas. Paulo Velloso, de olhos atentos e inteligentes por trás dos óculos de intelectual, parecia registrar tudo na mente. Levava duas pastas, uma embaixo de cada braço. Acho que eram as da Agricultura e a das Minas e Energia. Nunca essas pastas estiveram em sovacos mais dignos.
No final Chang tomou a palavra. Elisa, uma funcionária do Banespa, olhava-o fixamente, com uma expressão que nenhum homem tem o direito de morrer sem ter sido olhado assim, pelo menos uma vez na vida. (Ah, Lise, resgata-me deste raso de descrença com teus olhos de inocência e de perdão! Esta vontade de ajoelhar-me sempre que te vejo ou penso em ti! Dissolve com tua paz esta angústia de toda hora no meu coração! Diz uma palavra e semeia um pouco de esperança na desolação e na tristeza deste mundo!)

Olhei em torno para ver as outras testemunhas dessa virada histórica. Éramos uns três ou quatro, mais ou menos. Perto de nós um bêbado tentou chutar uma lata e só acertou o meio-fio. Um cachorro alienado farejava um caixote de lixo. Furando um bloqueio de poluição, ao longe e apesar de tudo, raia o day after. Simplório, desinformado e apolítico. O inevitável dia seguinte.

quinta-feira, 14 de julho de 2011

Musica

Um dia, atrasado para chegar ao banco, Eudes corria esbaforido pelo metrô. De repente começou a ouvir uma música no auto falante. Era Minas, do disco de mesmo nome do Milton Nascimento. Foi diminuindo o passo e parou, no meio da estação. A música era mais importante do que o banco.
Milton Nascimento - Minas (1975)

segunda-feira, 28 de março de 2011

O pai do Tóla

A única história de torcedor que o Eudes deixou escrita foi esta narrada a seguir. Apesar de incrível, posso atestar que era verdadeira porque presenciei a mencionada conversa na loja.

Meu cunhado me chamou para assistir a um jogo de futebol amador e disse “tem um cara aí, o Tóla. Quero que você me diga... vai ser o maior craque deste país”. E fomos.

Realmente o rapaz era bom, prometia. Tinha boa visão de jogo, estava presente em todas as partes do campo. De repente passou por nós correndo, no meio dos torcedores, um sujeito gritando: “lança, lança”. Deu um tranco de ombro no sorveteiro que caminhava à sua frente e sumiu. Daí a pouco o time adversário recupera a bola e parte para o contra-ataque. Lá vem o sujeito correndo de novo, gritando: “marca, marca. Olha o ponta”.

“Mas o que é isso!”, perguntei ao meu cunhado. “É o pai do Tóla”.

Do lado de fora ele corria mais do que qualquer um dentro do campo. Jogou o tempo todo como se estivesse lá dentro. Não tem torcedor no mundo como ele. Ninguém participa mais.

Daí pra frente esqueci o jogo, o Tóla, tudo. Passei o resto do tempo observando aquele homem de olhos vidrados distribuindo pontapés, empurrões e xingamentos. Cruzando e cabeceando no meio dos torcedores. No intervalo ele sumiu. Talvez tenha ido receber umas massagens. No segundo tempo, trocou de lado da torcida. Fez o jogo até o último minuto. Ao apito final, cumprimentou um homem por ali, um juiz imaginário. Pediu desculpas, deu tapinhas nas costas de um e de outro e foi embora, cabeça baixa.

Aquilo ficou na minha cabeça por vários dias durante aquelas férias. Um dia apareceu o Tóla na loja do meu cunhado. Estava lá e não resisti: “Tóla, vi seu pai durante o jogo. Se alguém me contasse eu não acreditaria”. Ele ficou meio sem jeito, tímido que era. Quando percebeu que não havia intenção de deboche no meu comentário, relaxou como se tivesse encontrado alguém para conversar sobre um tema delicado, de família.

“Sabe”, o Tóla foi se abrindo, “começou na copa de 70. Meu pai sempre foi muito nervoso assistindo jogo. Roía as unhas, batia os pés, levantava, sentava, não sossegava de jeito nenhum. Nas eliminatórias já foi demais: sofria, passava mal, contorcia todo. Muitas vezes perdíamos o final de algum jogo para correr com ele para o hospital. Até que um dia um médico disse “vai homem, se solta! Liberta tudo isso que está aí dentro. Não se contenha senão você morre.”

“No princípio não mudou nada. A coisa começou a ficar diferente naquele jogo contra a Tchecoslováquia. Estava 1x0 para eles e teve aquela falta perto da área. O Rivelino ajeitou a bola e se preparou para a cobrança. Meu pai se levantou transfigurado e foi caminhando de costas para o corredor. Pensei que fosse excesso de nervosismo, mas depois entendi que ele estava tomando distância. Quando o Rivelino correu para a bola, meu pai entrou em disparada na sala e plá! Enfiou a canhota na cristaleira! Quebrou tudo. Sem ligar para a perna que sangrava, saiu gritando gol, gesticulando, se benzendo... uma coisa de louco.”

“Lembra do Romeu Cambalhota, que era do Atlético e depois foi para o Corinthians? Pois é, meu pai passou a comemorar os gols dando cambalhotas na sala. Quase quebrava a casa toda. Teve uma vez que o Brasil estava jogando com um time aí, que tinha um ponta muito veloz. Meu pai fez aquela expressão de ódio que eu já vi só na cara de lateral esquerdo, e... zás! Deu uma tesoura na empregada que estava passando distraída. A moça pediu as contas na hora.”

“Lá em casa, o gato e o cachorro, só de ouvir a vinheta do início das partidas, fogem apavorados pro meio da rua. Reflexo condicionado. Numa falta com barreira, já tinha chutado o gato por cima do muro. E quando sai briga durante o jogo? Minha mãe, coitada, corre e se tranca no quarto.”

Histórias que o Eudes contava

“Numa temporada especialmente boa do Textil”, lembrava ele, “havia um sem número de pretendentes a jogador que enfrentavam as peneiras que ocorriam antes dos treinos do time principal. Alguns ‘peneiras’ ficavam para assistir o treino do ‘time de cima’. Num desses treinos, cheio de torcedores empolgados, o time não funcionava muito bem, irritando os mais fanáticos. Foi quando um dos ‘peneiras’ pegou uma bola do lado de fora do campo, jogou-a para o alto e fez o controle com a cabeça. A seguir saiu caminhando em volta do campo, sempre controlando a bola com toques de cabeça. Após alguns minutos, a torcida passou a seguir as manobras de foca com a bola na cabeça e parou de prestar atenção no treino modorrento. Não demorou a atenção se transformou em ovação. A imagem dos jogadores pouco inspirados dentro de campo, e o contraste com aquele garoto dando show de técnica e habilidade fora de campo, foi o suficiente para a torcida exigir a sua presença no time. O técnico resolveu experimentar e chamou o rapaz. Numa conversa rápida, perguntou em que posição jogava, retirou alguém do time para dar lugar ao novato. A torcida veio abaixo: agora sim! Faz o que você sabe, garoto! No primeiro lançamento em profundidade a torcida segurou a respiração na expectativa: agora vai! O novato, entretanto, ao invés de dominar a bola em direção ao gol, levantou-a e fez o que sabia: controle com a cabeça! Foi uma decepção descobrir que o rapaz era malabarista, não jogador de futebol.”

Outra boa história é a do Vado. Contava Eudes que “num jogo que o Cruzeiro, líder do campeonato, foi a Sete Lagoas, o estádio lotou. Era sempre um desafio e um prazer ver um dos grandes de Belo Horizonte jogar na cidade, tanto porque assim era possível ver de perto os craques mais famosos do estado, quanto pela emoção de ver dois times do coração, o local e o da capital, jogando um contra o outro. O Cruzeiro ganhava de 1x0 quando o Vado entrou em campo para o time local. Na primeira bola que recebeu, na intermediária, Vado dominou para o lado e chuta direto para o gol. No ângulo, sem chance para o goleiro. O jogo recomeça, outra bola rolada para o Vado, que domina de lado e bate, quase do meio de campo. No ângulo, outra vez! 2x1. A esta altura a torcida delirava. Foi quando rolam outra bola para o Vado, de novo de longa distância, solta a terceira bomba no ângulo. 3x1. O Cruzeiro saiu de Sete Lagoas com o Vado sob contrato. Como nunca mais se ouviu falar dele, imagina-se que seu futuro não tenha sido muito brilhante, mas por um dia, Vado foi rei.”

Ouvi várias vezes Eudes contar a história do Mussolini e o ‘Gravatinha’:Mussolini era jogador de um time de Sete Lagoas que foi jogar em uma cidade próxima. O ambiente era hostil, por uma rivalidade antiga e a partida era válida por um torneio regional. Desde o início deu para perceber que além do jogo duro do adversário, o juiz também facilitava para o time da casa. Foi aí que o Mussolini entrou em ação. Percebendo que a situação era amplamente desfavorável, Mussolini achou que poderia ganhar tempo chutando deliberadamente a bola para fora do campo. Como o campo ficava num alto, cada bola chutada fora demorava em ser reposta, pois os gandulas tinham que descer todo o barranco para buscá-la. Mussolini não fazia por menos: cada bola que caía no seu pé ele mandava com toda força para fora. Depois de uns chutes o jogo tinha de parar para esperar que os gandulas subissem o morro. O juiz advertiu Mussolini, os adversários ameaçavam fisicamente e a torcida já estava irascível. Mas ele nem aí: mandava para fora sem disfarçar. Com a ameaça de invasão de campo, a polícia também estava irritada com o Mussolini. O juiz deu um ultimato, e na próxima bola que recebeu Mussolini caprichou, mandando mais longe do que tinha feito com as anteriores. Não deu tempo nem para a expulsão: os donos da casa partiram para briga, a torcida invadiu e começou o maior quebra-pau. Quando a confusão acalmou um pouco, deu para ver Mussolini sendo arrastado por dois soldados que o levavam para a cadeia. Foi quando apareceu um senhor de gravatinha borboleta, provavelmente algum representante da liga regional, querendo amenizar o estrago que já estava feito. Convenceu os soldados a soltar Mussolini, afinal ele era um adversário, mas também o jogador de um time convidado a atuar na cidade. Ao se ver solto, Mussolini deu um inesperado direto no queixo do senhor de gravatinha, que caiu sentado, completamente atônito. Os soldados agarraram Mussolini, que naquele momento deve ter avaliado a situação e decidido que o local mais seguro era mesmo a cadeia.”

Minha história favorita sempre foi a do pênalti decisivo. “Democrata e Bela Vista disputavam a partida final de um torneio da cidade. O empate dava o título para o Democrata e o jogo estava 1x1. Aos 40 e tal minutos do segundo tempo, numa jogada confusa na área, o juiz marca pênalti para o Bela Vista. Empurra para lá, empurra para cá, discussão e muita argumentação não permitiam a cobrança do pênalti. Depois de passado muito tempo e sem chegar a qualquer acordo, os times saíram de campo sem que o pênalti fosse batido. A discussão sobre quem teria sido o campeão não conseguia ser resolvida pela liga municipal e já tinha virado a principal discussão da cidade. O assunto foi levado para a federação mineira. Alguns diziam que só a CBD teria isenção suficiente para resolver a questão. Ou a Fifa! Depois de muita negociação chegou-se a um acordo. O pênalti seria cobrado. Em uma semana o estádio seria aberto e entrariam em campo apenas o juiz, goleiro e o cobrador do pênalti para selar a decisão. Goleiro e cobrador treinaram em dois turnos. O cobrador estava afiado e quem acompanhava os treinos confirmava que tinha atingido um aproveitamento superior a 100%. O goleiro, diziam, tinha até crescido alguns centímetros, tamanha jornada de treinamentos. E pegava tudo. No dia marcado, foram os três para o campo. Uniformes novinhos em folha, chuteiras lustrando. A torcida lotou completamente as arquibancadas, os muros e as árvores do estádio. Ao apito do juiz, ninguém mais respirou. O cobrador iniciou sua corrida até a bola e... chutou mais chão do que bola. O goleiro teve que se adiantar para agarrá-la, pois ela não rolou até o gol. Testemunhas juram que um torcedor morreu ao cair de uma das árvores, de tanto rir.”

Histórias de torcedor

Eudes era palmeirense desde criança em Sete Lagoas, quando os meninos escolhiam para torcer um time do Rio e outro de São Paulo, além de um em Belo Horizonte e outro da cidade. No Rio era Vasco, mas a mudança para São Paulo ajudou a consolidar sua preferência pelo Palmeiras. Sobre o time de Belo Horizonte, sempre fez questão de algum mistério, deixando espaço tanto para o Atlético quanto para o Cruzeiro. Recentemente fiquei sabendo que na infância torcia pelo Cruzeiro, mas não foram poucas as oportunidades que o vi torcendo apaixonadamente pelo Galo. Afirmava que torcia igualmente para os dois, o que é algo um tanto difícil para um mineiro entender.

Em Sete Lagoas, dizia, era Bela Vista Futebol Clube. Talvez fosse uma identificação com o “periquito”, símbolo do time, e que também era o do Palmeiras, na era pré-porco. Talvez fosse apenas uma atitude de ironia pela quixotesca excursão européia do time em 1958, quando o Bela Vista enfrentou Real Madrid de Puskas, DiStefano e Kopa, no Santiago Barnabéu, e o Olympique em Marselha. Perdeu para o primeiro por 2x1 e para o segundo de 3x1, mas o time foi ovacionado em desfile de carro aberto em Sete Lagoas na volta da fracassada excursão. (Para saber mais sobre o Bela Vista, clique aqui)

Entretanto, seu envolvimento mais direto com o mundo do futebol foi com o Textil Esporte Clube, time da fábrica de tecidos da cidade, onde trabalhava. Acompanhou o time em excursões pelo interior como uma espécie de cartola e às vezes, técnico. Orgulhava-se de ter lançado um goleiro chamado Careca, que chegou a titular do Atlético no final dos anos 60, conheceu o juvenil Vaguinho, depois herói corintiano nos anos 70 e Calango, que hoje trabalha no mercado municipal setelagoano, e ainda se considera como um de “seus jogadores”. Por esse envolvimento com os bastidores do futebol, Eudes filosofava: “jogadores e prostitutas são as profissões mais parecidas uma com a outra”.

As melhores histórias de futebol que Eudes contava são do final dos anos 50 e início dos anos 60. Durante muito tempo insisti para que ele escrevesse estas histórias ele mesmo, que as contava e recontava em papos entre amigos, mas nunca obtive sucesso. Conto estas histórias de memória, do jeito que me ficaram gravadas, quase ouvindo sua voz.

Eudes, o torcedor de TV

Não há dúvida que a disseminação da TV como aparelho eletrodoméstico influenciou consideravelmente a relação dos torcedores com o esporte. Com o Eudes não foi diferente. Passou a exercitar a sua verve de comentarista com muito mais propriedade, e conseguia assistir a número muito maior de jogos: dos campeonatos tradicionais, aos torneios dente-de-leite, até as domingueiras sessões do “Desafio ao Galo”.

As copas do mundo, por exemplo, passaram a ser eventos muito mais relevantes no mundo do que eram antes de podermos assistir os jogos ao vivo. De 58 e 62, tínhamos guardadas imagens em edições amareladas das revistas Cruzeiro e Manchete que ficaram anos nas gavetas lá de casa. Da copa de 66, a única imagem que me ficou foi a capa de uma revista Realidade, com Pelé usando um tradicional chapéu da guarda inglesa, sugerindo que tínhamos ganhado o tri.

Em 70, com os jogos ao vivo tudo ficou diferente. As reuniões para assistir o jogo em frente à TV passaram a ser uma regra. Na copa de 74, as TVs coloridas ajudaram a dar sentido ao apelido de “laranja mecânica” da seleção holandesa. As palavras “replay” e “repeteco” entram em nosso vocabulário a partir das copas transmitidas ao vivo. E as imagens e “closes” nos jogadores passaram também a fazer parte das análises.

O anticapitalismo do Eudes confrontava com a mercantilização da imagem do jogo. Na final de 70, depois que o Pelé bate uma falta para a arquibancada solta: “tá usando chuteira do patrocinador”. Talvez fruto de sua deficiência capilar, reclamava muito do visual “black-power” de Jairzinho, Paulo César Caju e cia, na copa de 74. “Amortece a bola e prejudica a cabeçada”, explicava cientificamente. Eudes também confrontava com certos hábitos e costumes que se disseminaram com a geração de jogadores pop star: “jogador gasta 5% do seu tempo com futebol, 15% com mulher, 25% com carro e 55% com cabelo”.

O jogo vira evento esportivo e outros esportes passam a fazer parte da nossa rotina de torcedores. Assisti ao vivo a muitos destes eventos no sofá da sala de casa, com meu pai: o milésimo de Pelé, o nocaute de Mohamed Ali em George Foreman, o homem na lua... fórmula 1, vôlei, tênis, olimpíada... Emerge o torcedor de TV que justifica o fim do torcedor de estádio.

Eudes, o torcedor no estádio


Acostumei a acompanhá-lo para assistir jogos desde pequeno, quando íamos aos domingos no campo de terra batida da Aliperti, a siderúrgica próxima da nossa casa. Em 1969 (exato um mês antes do milésimo de Pelé), alguns tios que vieram de Minas para nos visitar queriam ir ao Pacaembu assistir Corinthians e Santos. Quem sabe não acontecia uma goleada astronômica e o Pelé chegava aos mil naquele dia? Meu pai não queria me levar e argumentava que poderia ser perigoso para uma criança de 9 anos. Com a pressão de minha mãe e de meus tios, cedeu.

Chovia muito desde cedo naquele domingo. Já chegamos encharcados ao estádio e, mesmo antes de começar o jogo, não conseguíamos sair da área coberta do Pacaembu. Como tínhamos guarda-chuva, queríamos descer para a área descoberta, o que a maioria, os sem guarda-chuvas, não queria. E travavam nossa possibilidade de descer e ter alguma visibilidade do campo. Na confusão, empurra-empurra, Eudes falou: “cuidado que aqui tem criança!”. Alguém retrucou: “criança que se foda!”. Imediatamente deu um murro no fulano. A confusão, que já estava armada, virou ameaça de briga pra valer. Eu espremido contra ele, que segurava o guarda-chuva com a mão esquerda e mantinha o punho direito em posição de ataque. Enquanto isso, um velho tentava roubar o guarda-chuva da mão esquerda dele, concentrado apenas na briga iminente. A situação não ficou pior porque não havia espaço nem para brigar. E o velho acabou por arrancar o cabo do guarda-chuva, enquanto o outro fulano se afastava espremido na multidão sem ter reagido. Nisso ele volta seu olhar de ataque para o velho que, meio sem jeito, devolve o cabo do guarda-chuva com um sorriso amarelo. Conseguimos descer depois que o jogo já havia começado. Mas só houve o primeiro tempo, que terminou 1x1: Rivelino depois Pelé. No intervalo o juiz veio ao meio do campo para fazer sinal de que o estado do gramado não permitia as mínimas condições para um jogo de futebol. (sobre este jogo que não acabou, clique aqui). Frustrante para mim, que senti pela primeira vez o que era uma verdadeira confusão em estádio de futebol. E se foi um tanto assustador ver meu pai tão agressivo, pelo menos senti que esta agressividade era para me proteger.

O resultado dessa experiência é que eu iria ficar um tempo ser ir ao estádio novamente. Por isso não acompanhei meu pai na final entre São Paulo e Palmeiras, em 1971. Lembro bem do jogo, pois vi tudo pela TV várias vezes. Aos 5 minutos, um tal de Minuca sobe elegantemente e cabeceia a bola para o meio da área, bem nos pés de Toninho Guerreiro. São Paulo 1x0 (veja). No segundo tempo, o time do Palmeiras, com Ademir, Leivinha e César passa a dominar a partida. Quando Leivinha consegue fazer o que seria o gol de empate, o Armando Marques anula o gol argumentando uma mão na bola que só ele viu (confira no youtube). Não sei direito o que aconteceu com o Eudes neste dia no Morumbi, mas ele voltou para casa sem o rádio que tinha levado ao estádio.

A esta altura já sabia que ele poderia virar um torcedor enfurecido, quando envolvido com multidões em estádios. Fomos algumas vezes juntos a jogos, sem maiores incidentes. Assistimos tranquilamente a jogos do Brasil na Minicopa de 1972, no Maracanã e até jogos de Palmeiras contra o Santos. Como torcíamos para times diferentes, eu ia ao estádio com uns vizinhos santistas, e os percebia bem menos tensos que ele, que costumava ficar uma pilha. Num São Paulo e Palmeiras, em 1974 vi a fúria tomar conta novamente do torcedor. O São Paulo fez 2x0 e saímos do jogo caminhando pela avenida Morumbi, em meio a palmeirenses cabisbaixos e lamentosos. Quando passa um carro de são paulinos gritando e gozando os derrotados. Meu pai sem pensar, em um instante, pega meio tijolo e manda direto no carro. Por sorte a pontaria dele foi ruim. Fiquei muito assustado e acho que ele também, com sua própria reação impensada, perigosa e completamente anti-social. Nunca mais foi a um estádio na vida.