quinta-feira, 24 de janeiro de 2019

Rosa e Eudes

Desde criança conhecemos a história do tumultuado namoro e casamento dos meus pais. No último dia 20/jan/2019, comemoramos os 60 anos deste casamento. 

Rosa prestou atenção em Eudes pela primeira vez numa festa junina do Tiro de Guerra, quando foi ao quartel acompanhando seu irmão. O recruta Eudes, por exibicionismo ou exagero juvenil, caiu no pátio, bêbado em meio ao casamento caipira organizado no quartel. Para sorte dele, o vexame não comprometeu o interesse dela.

Ambos trabalhavam na mesma fábrica de tecidos. Depois de troca de olhares e sinais por longos três meses, Eudes se aproximou da máquina em que ela trabalhava e a pediu em namoro, meia hora antes do final do expediente. Rosa abriu um sorriso, mas imediatamente ficou preocupada. Não queria que Seu Vicente, seu pai, rondante da mesma fábrica, os visse juntos já no primeiro dia. Eudes, marrento, acompanhou Rosa na saída da fábrica e ainda cumprimentou: "boa tarde, Seu Vicente". No dia seguinte, Da. Maria, mãe de Rosa, devidamente alertada, deu o recado do marido: "diga a esse moleque que se quiser namorar, que venha aqui na minha casa".





Rosa passou o recado a Eudes: "vou falar com ele”, reagiu. No feriado eleitoral de 3 de outubro, depois de votar em Juscelino, Eudes iria oficializar com Seu Vicente o namoro do qual todos já sabiam há algumas semanas. Na véspera, conversando com os colegas na fabrica, foi alertado para não aceitar café na casa de namorada no primeiro dia. Segundo se dizia, poderiam servir café coado no sutiã e, se bebesse, estaria "amarrado".

Acontece que Seu Vicente estava doente naquele dia e tinha outras visitas na casa. Quando Eudes chegou, no fim de tarde, Rosa que estava fazendo café para as visitas foi recebe-lo na sala. Mirtes, irmã mais nova, assumiu o fogão e, mal Eudes tinha sentado no sofá, chegou com a bandeja de xícaras com o café. Eudes, pensou no alerta dos amigos e fez uma cara de deboche. Pegou a xícara, segurou, olhava pra ela, mas não bebia o café. "Bebe enquanto está quentinho, mais gostoso", dizia Mirtes. Quando não conseguiu mais enrolar, não teve jeito, bebeu. Depois foi falar com Seu Vicente no quarto. No dia seguinte, teve de aguentar a gozação dos colegas na fábrica.

Era um comportado namoro, de acordo com o protocolo de Sete Lagoas em 1955. Ele com 19 e ela com 17. O maior problema era driblar o rigor dos controles da fábrica. Seu Vicente usava esse argumento para aumentar a fiscalização sobre Rosa: "se namorar na fábrica vai ser mandada embora!". Para driblar essa situação de não poderem se falar, Eudes enfiava bilhetinhos no bolso do avental que ela usava na fábrica. Namoraram por bilhetes por muito tempo pois se encontravam mais na fábrica do que em qualquer outro lugar. 

Fora da fábrica Seu Vicente também não dava folga. Não deixava Rosa sair e, obediente, ela evitava confrontar o pai. Para ir além dos bilhetes, Rosa às vezes escapava para ir a alguma reunião da Juventude Operária Católica, JOC encontrar Eudes. Outras vezes tinham oportunidade em grandes festas da cidade, como a de 1956, na Serra de Santa Helena, quando Eudes tirou a sua primeira foto de Rosa.
Com o tempo, Seu Vicente baixou a guarda e permitiu que Eudes fosse namorar em sua casa. Não queria saber de namoro agarrado e no começo exigiu que um dos irmãos menores sentasse entre os dois. Algum tempo depois, quando desconfiou que Eudes levava balas para os meninos saírem da sala, mandou os namorados sentarem na mesa, ela numa ponta ele na outra. E 9 horas tinha que ir embora. 

A coisa começou a esquentar quando Eudes resolveu pedir Rosa em casamento. Levou seu irmão Rogério, de 6 anos, quando foi falar com Seu Vicente. Talvez a imagem de Eudes segurando um menino pela mão tenha influenciado e Seu Vicente aceitou o noivado. Mas queria saber quando ele iria construir uma casa. Sem casa não iria ter casamento. Eudes disse que não tinha recursos para construir mas que conseguiria sustentar um lar. Era 19 de março de 1957, dia de São José, e Eudes foi correndo encontrar Rosa na porta da fábrica para entregar as alianças. 

Em casa, com Rosa, a conversa foi diferente. Seu Vicente começou a implicar e a questionar "até quando ia ser esse tipo namoro", porque Eudes ganhava salário mínimo e não tinha condição de casar. Além disso, já tinha uma filha mais velha casada com um negro e, pelo tom do moreno de Eudes, estava encaminhando outra. Dizia: “ele não vai construir uma casa, o cabelo dele não cai na testa, ele é preto”.

Depois de um ano que já estavam noivos, Seu Vicente implicando, Eudes resolveu: “vamos casar logo! Aí seu pai para de implicar”. Quando foi marcar a data de casamento, Seu Vicente disse que não iria ter casamento nenhum. Mesmo assim Eudes foi ao cartório, pegou a autorização que o pai tinha de assinar para a filha menor de 21 anos casar. Rosa entregou o documento ao pai, que rasgou na sua frente.

Eudes e Rosa queriam se casar. Queriam mesmo. E enfrentariam o que fosse preciso para fazer esse casamento acontecer. Resolveram esperar que Rosa completasse 21 anos para poder casar sem precisar da autorização do pai. No dia de seu aniversário, em 28 de dezembro, foram ao cartório e saíram de lá com a data de 20 de janeiro de 1959, dia de São Sebastião, marcada para o casamento. Eudes não podia mais visitar Rosa em casa e Seu Vicente xingava e garantia que não ia ter casamento. 

Com a data marcada e a insistência de Seu Vicente em afirmar que não haveria casamento nenhum, a conversa começou a circular na cidade. Vai ou não vai ter casamento? Seu Vicente bebia umas e outras pelo bairro, tinha uma garrucha e era conhecido por dar uns tiros para o alto de vez em quando para resolver alguma questão. Com a insistência das perguntas sobre o casamento enquanto estava tomando as suas, subiu o tom: disse que ia matar o pretenso noivo. Eudes não fez por menos e retrucou dizendo que iria matar Seu Vicente se ele tentasse impedir o casamento. E Rosa desesperada, com medo de perder o noivo ou o pai. 

Nô, um irmão mais velho de Rosa, veio conversar com os dois pedindo para adiar o casamento e dar um tempo maior para que Seu Vicente fosse convencido. Eudes não quis recuar. Se fosse para adiar, não iria ter casamento. A coisa complicou tanto que o padre Correia entrou na história. Chamou Seu Vicente para conversar, que ele mudasse de ideia, que a filha queria casar, que o rapaz era boa pessoa, que já tinha conversado com ele várias vezes, etc. Seu Vicente não arredava e dizia que não aceitaria o casamento de jeito nenhum. E o barulho sobre o que iria acontecer no dia do casamento aumentava na cidade.

Na missa do domingo anterior ao casamento, que seria numa terça, padre Correia fez uma homilia dizendo, de forma geral e sem citar nomes, que os pais deveriam entender os desejos dos jovens de casar e apoia-los, não ir contra. Seu Vicente sabia que era um recado para ele e ficou furioso. Voltou pra casa voando e pegou Rosa no fogão de lenha, ajudando a mãe com os pastéis que faziam para vender. Pegou um tição no fogão, acendeu seu cigarro de palha com ele e começou a bater em Rosa com o tição em brasa, xingando, que não teria casamento e que ela iria ficar viúva antes de casar. Rosa, assustada, apanhou na cabeça, no ombro, com as brasas caindo dentro da roupa, ficou cheia de bolhas e com partes do vestido queimando. Como foi um escândalo, a vizinhança ficou sabendo e a história que corria era que Seu Vicente tinha posto fogo na filha para ela não casar! Foi uma confusão. Seu Vicente ficou sumido o resto do dia e Eudes passou lá para tirar Rosa de casa definitivamente. Mas ela ouviu sua mãe e decidiu que só iria sair da casa dos pais para a casa do marido. Não iria fugir na véspera do casamento.

Na segunda-feira estava tudo meio esquisito. Seu Vicente foi direto com Rosa: "eu vou deixar bem claro pra você, não vai ter casamento amanhã e se vocês insistirem eu vou matar o noivo dentro da igreja". Eudes também olhou Rosa nos olhos e disse: "eu vou matar seu pai quando ele aparecer na porta da igreja". 

Rosa mal dormiu e tinha que dobrar o turno na terça para ter um dia de folga na lua-de-mel. Pegou o turno das seis e foi direto até as duas da tarde. Saiu morrendo de fome e foi para a casa da cunhada, de quem tinha emprestado o vestido de noiva. Lá comeu couve com angu e feijão, que era o que tinha sobrado do almoço, pegou o vestido num saco e foi passá-lo para se preparar para o casamento. Rosa não tinha enxoval. Eudes tinha alugado a casinha que eles iriam morar e já estava levando algumas coisas, mas Rosa nunca tinha ido lá, com medo de seu pai ficar sabendo. 

Como a história do bangue-bangue na igreja já corria solta, padre Correia ficou preocupado. Tinha chamado também Eudes para conversar, e sabia que ele estava resolvido. No dia do casamento, Eudes colocou um revólver pequeno que tinha arranjado no bolso do terno e foi para a igreja. Rosa contou com a ajuda de uma amiga para se arrumar e Seu Zé Dias, chefe dela na fábrica, passou para pega-la de carro e leva-la para a igreja. 

A igreja estava cheia como nunca para um casamento de terça-feira. Tinha gente até do lado de fora porque dentro estava totalmente lotado. Já dentro da igreja, Seu Zé Dias suava frio ao conduzir Rosa para o altar. Eudes esperava no altar com a mão no bolso e não tirava o olho da porta da igreja. Apesar da expectativa e ansiedade de todos, nunca houve cerimônia de casamento mais rápida na cidade. Padre Correia resolveu ir direto ao assunto e acabar logo com a confusão. Seu Vicente não apareceu. Foi com Da. Maria e os filhos menores para uma roça que tinha nos arredores da cidade. 

Depois da cerimônia relâmpago, a multidão foi se dispersando, um pouco frustrada, e uns poucos amigos e familiares foram para a casa que Eudes e Rosa agora iriam chama de lar. Dona Albertina, mãe de Eudes, e Tia Maria, irmã de Rosa, fizeram uns docinhos e salgadinhos e foi só. Seu Vicente e Rosa voltaram a se falar mais de um ano depois, quando nasceu o primeiro filho do casal. Rosa nunca deixou de respeitar e amar seu pai e depois deste episódio mantiveram uma relação próxima.