A única história de torcedor que o Eudes deixou escrita foi esta narrada a seguir. Apesar de incrível, posso atestar que era verdadeira porque presenciei a mencionada conversa na loja.
Meu cunhado me chamou para assistir a um jogo de futebol amador e disse “tem um cara aí, o Tóla. Quero que você me diga... vai ser o maior craque deste país”. E fomos.
Realmente o rapaz era bom, prometia. Tinha boa visão de jogo, estava presente em todas as partes do campo. De repente passou por nós correndo, no meio dos torcedores, um sujeito gritando: “lança, lança”. Deu um tranco de ombro no sorveteiro que caminhava à sua frente e sumiu. Daí a pouco o time adversário recupera a bola e parte para o contra-ataque. Lá vem o sujeito correndo de novo, gritando: “marca, marca. Olha o ponta”.
“Mas o que é isso!”, perguntei ao meu cunhado. “É o pai do Tóla”.
Do lado de fora ele corria mais do que qualquer um dentro do campo. Jogou o tempo todo como se estivesse lá dentro. Não tem torcedor no mundo como ele. Ninguém participa mais.
Daí pra frente esqueci o jogo, o Tóla, tudo. Passei o resto do tempo observando aquele homem de olhos vidrados distribuindo pontapés, empurrões e xingamentos. Cruzando e cabeceando no meio dos torcedores. No intervalo ele sumiu. Talvez tenha ido receber umas massagens. No segundo tempo, trocou de lado da torcida. Fez o jogo até o último minuto. Ao apito final, cumprimentou um homem por ali, um juiz imaginário. Pediu desculpas, deu tapinhas nas costas de um e de outro e foi embora, cabeça baixa.
Aquilo ficou na minha cabeça por vários dias durante aquelas férias. Um dia apareceu o Tóla na loja do meu cunhado. Estava lá e não resisti: “Tóla, vi seu pai durante o jogo. Se alguém me contasse eu não acreditaria”. Ele ficou meio sem jeito, tímido que era. Quando percebeu que não havia intenção de deboche no meu comentário, relaxou como se tivesse encontrado alguém para conversar sobre um tema delicado, de família.
“Sabe”, o Tóla foi se abrindo, “começou na copa de 70. Meu pai sempre foi muito nervoso assistindo jogo. Roía as unhas, batia os pés, levantava, sentava, não sossegava de jeito nenhum. Nas eliminatórias já foi demais: sofria, passava mal, contorcia todo. Muitas vezes perdíamos o final de algum jogo para correr com ele para o hospital. Até que um dia um médico disse “vai homem, se solta! Liberta tudo isso que está aí dentro. Não se contenha senão você morre.”
“No princípio não mudou nada. A coisa começou a ficar diferente naquele jogo contra a Tchecoslováquia. Estava 1x0 para eles e teve aquela falta perto da área. O Rivelino ajeitou a bola e se preparou para a cobrança. Meu pai se levantou transfigurado e foi caminhando de costas para o corredor. Pensei que fosse excesso de nervosismo, mas depois entendi que ele estava tomando distância. Quando o Rivelino correu para a bola, meu pai entrou em disparada na sala e plá! Enfiou a canhota na cristaleira! Quebrou tudo. Sem ligar para a perna que sangrava, saiu gritando gol, gesticulando, se benzendo... uma coisa de louco.”
“Lembra do Romeu Cambalhota, que era do Atlético e depois foi para o Corinthians? Pois é, meu pai passou a comemorar os gols dando cambalhotas na sala. Quase quebrava a casa toda. Teve uma vez que o Brasil estava jogando com um time aí, que tinha um ponta muito veloz. Meu pai fez aquela expressão de ódio que eu já vi só na cara de lateral esquerdo, e... zás! Deu uma tesoura na empregada que estava passando distraída. A moça pediu as contas na hora.”
“Lá em casa, o gato e o cachorro, só de ouvir a vinheta do início das partidas, fogem apavorados pro meio da rua. Reflexo condicionado. Numa falta com barreira, já tinha chutado o gato por cima do muro. E quando sai briga durante o jogo? Minha mãe, coitada, corre e se tranca no quarto.”