sábado, 14 de novembro de 2020

Nezinho



Herberto Diniz, meu tio Beto, irmão dois anos mais novo do Eudes, escreveu esta carta, postada de Sete Lagoas em 2/4/1996:

EUDES, como lhe disse, aí estão os primeiros rabiscos, uma ideia do que estou pretendendo. As informações que você puder me mandar, inclusive registros pessoais de memória, registros dos parentes, aquela certidão, tudo será bem recebido. O que vai sair daí, só o tempo dirá.

             "Meu pai, Manoel Ferreira Diniz, Nezinho para os familiares e amigos, era filho de Emídio Ferreira Diniz e Evelina Ferreira Diniz. Nasceu a 19 de novembro de 1907 em Petrolina, do lado pernambucano do rio São Francisco, bem defronte à cidade baiana de Juazeiro, região onde uma ponte liga Pernambuco à Bahia.

            Barbeiro e cabeleireiro por profissão, ganhou popularidade local pelos seus dotes de violonista e cantor. Em Petrolina, atuou em muitos shows, principalmente acompanhando cantores populares famosos na década de trinta. Já reunia uma quantidade apreciável de convites e cartas de apresentação, referências que certamente lhe abririam portas, quando tomou a decisão de partir em busca do sonho de voos mais altos na carreira artística, quando as emissoras de rádio começavam a abrigar artistas de sucesso no Rio de Janeiro.

           


               E
mbarcou em um dos muitos barcos a vapor da C
ompanhia de Navegação do São Francisco, que compunham a linha Juazeiro a Pirapora, ponto final da parte navegável do rio. Permaneceria alguns dias em Pirapora na casa de Vicente, seu irmão mais velho, antes de prosseguir viagem em direção à antiga capital federal, provavelmente na segunda classe do trem expresso da estrada de ferro Central do Brasil. Assim que chegou a Pirapora, começou a trabalhar enquanto aguardava a hora mais propícia para por o pé na estrada e cumprir sua sina de nordestino. 

           A habilidade na tesoura e nas cordas foi trazendo amigos e ele foi ficando. Casou-se e teve filhos em Pirapora. Nezinho não era aquele boêmio clássico, embora eventualmente participasse de noitadas com os seresteiros da cidade. Não era farrista, como naquele tempo o violão poderia sugerir. Jovens e adultos de todas as idades e de todas as famílias tanto se sucediam na sua cadeira de barbeiro quanto se deleitavam com as valsas, modinhas e sambas em voga, reproduzidas pela sua voz e seu violão.

Em 2020, falando desta carta, Beto revelou outras informações sobre Nezinho:

           O principal clube de Pirapora nessa época era o Independentes, ao lado de nossa casa, o clube da chamada elite local. Havia também o clube dos Marítimos, do pessoal da navegação, mais popular. Nezinho passou a participar ativamente da vida da comunidade, e ajudou a fundar aquele que se tornou um dos principais clubes sociais do lugar. Meu pai pretendia que o clube fosse também literário, mas essa ideia não foi vista com bons olhos e foi vencida, e o clube no fim ficou apenas recreativo. Parece que grupos literários abrigavam movimentos de esquerda, numa época em que os comunistas eram muito demonizados. Veja a ata nº. 1, do Centro Recreativo Piraporense: 

Pirapora, 11 de janeiro de 1941. Amºs. e Srs. - Havendo necessidade de fundar-se mais um Club recreativo e literário em Pirapora, tomo a iniciativa de convidar Vs.Srs. para uma reunião amanhã, dia 12, às 14 horas no Hotel Internacional, a fim de discutirmos os pontos principaes (sic) e elegermos uma diretoria provisoria. 

Ass. Manoel Diniz, seguindo-se 38 outras assinaturas, e os respectivos "scientes". 

Inauguração do Club noticiada no jornal carioca A Noite em 29/05/1941


                  Em março de 1942, com navios sendo afundados na costa brasileira, o assunto do momento era a guerra. Nezinho ficava até tarde da noite ouvindo as notícias internacionais pela Voz da América nas ondas curtas do rádio, pois as estações brasileiras fechavam mais cedo. Embora as transmissões fossem também em português, parece que ele ficava procurando outras estações, espanholas ou mesmo portuguesas, pois não creio que pudesse compreender completamente as transmissões em inglês. Encontrei um livro, já sem capa, com lições básicas de pronúncia em inglês e restos de livros contábeis em branco que ele utilizava para anotações (além de barbeiro, também fazia escritas contábeis). Aparentemente era autodidata, dadas as dificuldades para estudar naquela ocasião.   

                Numa tarde de festa solene no clube, em que seriam inaugurados retratos do presidente e do governador, Nezinho pegou três dos filhos, Dagmar, Eudes e eu, com 7, 6 e 4 anos de idade, e nos levou para essa reunião. Minha mãe ficou em casa com Roberto, de dois anos, e já nos dias de ter Manoelita. Quando saímos de casa, veio até a porta, de lenço branco na cabeça, eu disse a ela que íamos "tirar retrato", uma confusão com a inauguração dos retratos. Podia ter sido um dia comum, mas foi o dia que mudou o destino de cada um de nós. Nezinho nunca pode trazer os filhos de volta para casa. Ao final da solenidade, sentiu-se mal e faleceu no local.         
 
Praça do Coreto em Pirapora nos anos 40

              No dia do falecimento do meu pai, vi Eudes no meio da praça do Coreto, com a gravata do meu pai no pescoço. Parecia se divertir, sem noção do drama que estava se desenrolando. Uma moça chegou perto e disse que meu pai tinha ido comprar picolés para nós. Dagmar presenciou a morte do meu pai e disse que eles o deitaram numa varanda ao lado do salão do clube. 

            Alguns flashes desse dia: ele deitado na cama lá em casa com um lenço cobrindo o rosto, um curioso chegando e levantando o lenço para olhar. Minha madrinha e a irmã, o beijo de despedida no rosto gelado. Não consigo me lembrar quem nos levou pra casa de uns vizinhos, com uns meninos da nossa idade. Eu disse que "a gente morria mas depois voltava". Um deles desmentiu e me deixou com um nó na garganta. Meias lembranças que vou levar comigo. 

Ata da vigésima primeira (21ª.) seção do Centro Recreativo Piraporense, realizada às quinze (15) horas do dia quinze (15) de março de mil novecentos e quarenta e dois (1942), presentes a diretoria do Centro, os exmos. senhores juiz de direito, prefeito municipal, coletor estadual, altas autoridades públicas, representantes de casas de crédito, do comércio e indústria da cidade, e corpo social do Recreativo, com o fim especial do programa, qual seja o de fazer-se inaugurar no salão do Centro os retratos dos eminentes senhores dr. Getúlio Vargas, chefe da República, dr. Benedito Valadares, governador do estado de Minas e major Ernesto Dorneles, chefe de polícia do mesmo estado. O sr. Nelson Trindade Cota abre a seção convidando para presidi-la o meritíssimo senhor dr. Edmundo Bicalho Filho, juiz de direito da comarca. (seguem-se vários parágrafos sobre o transcurso da reunião). Em seguida, o presidente da seção leu dois telegramas de agradecimentos das homenagens respectivamente dos exmos. srs. drs. Getúlio Dorneles Vargas e dr. Benedito Valadares Ribeiro. Franqueada a palavra dela fez uso o sócio Manoel Ferreira Diniz, que em breves palavras pediu que a solenidade fosse coroada cantando-se no seu encerramento o Hino Nacional Brasileiro. O exmo. juiz de direito fez uma oração sobre o nosso hino, sendo muito aplaudido. Pelos presentes foi cantada com entusiasmo a canção nacional.  Nada mais havendo que se fizesse, foi encerrada a seção (sic), mandando o sr. presidente do Centro que por mim fosse lavrada a presente ata, etc., seguindo-se 3 assinaturas. 

                Na ata escrita naquele dia, não havia nenhuma observação sobre o que ocorreu ao final. Mas em 1993, Manoelita esteve em Pirapora, procurou o antigo presidente, resgatou várias cópias das atas, e cobrou dele essa omissão. Com a letra já um pouco trêmula, ele fez seguinte emenda na ata do dia 15 de março de 1942:

"Obs. Lamentavelmente, no fim do Hino Nacional cantado a pedido do nosso sócio nº. 1, Manoel Diniz, razão de ser deste Club, sua emoção foi tanta que começou a passar mal. Levamos o associado para o alpendre e imediatamente chamamos o dr. Rodolfo Malard, que morava em frente do Club, entretanto quando o médico chegou dissera ser desnecessario (sic) qualquer outra providência, porque o estimado sócio se encontrava morto. Ass. Nelson Trindade Cotta, Presidente"

Falecimento de Nezinho noticiado no jornal A Noite em 17/03/1942




                 Naquele dia, além dos retratos mencionados foram inaugurados outros, inclusive o do meu pai, que eu pude ver anos mais tarde, na parede de um cubículo ao lado do salão. Mãe dizia que no dia do enterro, uma segunda-feira, foi uma espécie de feriado, nada funcionou em Pirapora. Antigamente era possível, até porque o prefeito era meu padrinho, compadre dele.

                Nezinho talvez fosse um cara de estopim meio curto. Vi umas tiradas dele em uma das atas do primeiro ano, chamando a atenção do pessoal por um erro. Tinha o propósito de seguir viagem com a família no fim do ano, mas estava escrito que não chegaria ao Rio de Janeiro. Seus planos, seus sonhos, terminaram ali mesmo. Tinha 34 anos.                


Um comentário:

  1. Impressionante! História tão inusitada mas que Eudes nunca me contou nos tantos anos que andamos juntos.

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