sexta-feira, 30 de março de 2012

Saudosismo

Eudes tinha algumas convicções musicais que às vezes me eram difíceis de compreender. Tínhamos gosto musical e temperamento parecido, o que me fazia rebater algumas delas. Marcou muito uma divergência que tivemos sobre a música Saudosismo, do Caetano.

Começou quando assistíamos na TV (Band?) o reencontro histórico entre Caetano e João Gilberto. Caetano e, acho, Gal, já cantavam sentados no chão quando João chegou e a câmera passa a registrar a sua chegada ao estúdio. Caetano cantando e João entrando numa sequência memorável. Quando João finalmente encontra Caetano, este passa a chorar convulsivamente.

Emocionante o discípulo encontrando o mestre, pensei eu. Eudes fez algum comentário sarcástico, como que ressaltando uma certa hipocrisia do Caetano, que tinha feito uma música desbancando a bossa nova e o próprio João.

Que história era essa? Diferente de tudo que eu sabia dos dois gênios da nossa música! Tinha lido milhares de vezes sobre a importância da bossa nova para Caetano e não conhecia essa música. "Saudosismo", me explicou. "Uma música que coloca a bossa nova como coisa do passado", resmungou o bossanovista apaixonado.

Nunca tinha ouvido falar dessa música. Não estava em nenhum disco que eu conhecia e, como naquela época pré-internet, google, youtube, nem sabia como encontrá-la. Mesmo assim rebati de pronto. Não era possível que o Caetano tivesse feito uma música contra a bossa nova.

A memória prodigiosa e a vocação musical inata do Eudes entraram em ação e ele cantarolou a música para mim: "Eu você nós dois já temos um passado meu amor..." Adorei de primeira audição aquela mistura de letras de músicas conhecidas da bossa nova com frases como "outras mumunhas mais" e "ao som dos imbecis", que não combinavam nada. E era lindo o contraste.

Tentei interpretar, argumentando que aquele saudosismo era o sinal dos tempos, da mudança, da evolução constante que a própria bossa nova era símbolo. O novo, o revolucionário, tudo fica velho, e isso não era necessariamente ruim. O novo fica velho para dar lugar ao mais novo.

Eudes resmungava: "desmerece a bossa nova". Talvez o verso "como dois quadradões" o tenha deixado frustrado naquele momento que entrava nos seus quarenta anos, não tinha conseguido a sua revolução e ainda era obrigado a aguentar a ditadura militar, que dava poucos sinais de arrefecer.

Durante um tempo, anos, discutimos sobre isso, ele mantendo a posição dele e eu a minha, com uma grande desvantagem para mim, pois só conhecia a música através dele. Já sabia até cantar um pedacinho, mas não sabia onde encontrá-la. Seria preciso que alguma gravadora resolvesse generosamente nos presentear com alguma reimpressão daquele vinil perdido no tempo e, àquela altura, com pouco ou nenhum valor comercial.

A divergência passou, mas guardei na memória aquela sensação de desencontro na interpretação da música.

Em meados dos anos 80 Caetano regrava Saudosismo. Para meu deleite. Chorei de prazer ao ouvir aquela batida de bossa nova "girando na vitrola sem parar" e terminando com uns acordes meio rock'n roll, bem ao estilo tropicalista, a esta altura algo bem comportado.

Corri para o Eudes a relembrar nossa divergência. Ele não se recordava daquela imagem que ficara viva em mim. Mas usou os mesmos argumentos de antes. Ouvimos juntos e percebi que ele também gostava da música, mas de alguma forma a renegava. Lobo, lobo bobo.

Só sei que aprendi com o Eudes para sempre ser desafinado...